Está na blogosfera. A Microsoft lançou ontem a fundação
CodePlex com o intuito de "permitir a troca de códigos e conhecimentos entre companhias de software e comunidades open source" (enable the exchange of code and understanding among software companies and open source communities).
Somando isto ao fato de que recentemente a
MS contribuiu pela primeira vez com linhas de código para o kernel do Linux,
está abrindo mão de algumas patentes em favor do software livre e
vem apoiando a adoção de um formato livre para documentos de escritório, torna-se nítido que estamos entrando em uma nova fase. Porém qual nova fase?
Conheça a história e a história vos dirá. A nova fase não é a da sagração do software livre, mas a da tentativa, espero que sem sucesso, de corrosão do movimento.
Quando o movimento do software livre se iniciou, ou melhor, quando o GNU/Linux começou a sair do nicho dos über hackers e alcançar os meros geeks do dia-a-dia, a Microsoft saiu em claro ataque ao movimento,
taxando-o até mesmo de câncer. Durante os anos em que se seguiram, embora o software livre não apresentasse ameaça real ao monopólio global da empresa no mercado de softwares,
a empresa de Bill Gates manteve sempre uma postura de repúdio à ideologia livre do movimento, espalhando FUD pela internet e mídia especializada, usando suas patentes para atacar os desenvolvedores de código livre, tentando
abertamente sufocar o movimento.
O que, então, teria acontecido para que de inimiga do código livre, de repente, passasse a "apoiar" com o movimento?
O que aconteceu foi que a estratégia inicial se mostrou ineficaz e a companhia foi forçada a uma mudança de estratégia. Não obstante os constantes ataques ao movimento, o software livre tem se mostrado resistente e vem crescendo, lenta, porém constantemente, e começa a sair dos núcleos geeks e alcançar os meros usuários, começa a chamar a atenção de um público maior.
Basta ver as estatísticas de um Firefox, de um OpenOffice, das distros
GNU/Linux, principalmente após o nascimento do Ubuntu e a aparição dos Netbooks, o crescente apoio governamental às iniciativas open source para perceber o crescimento do software livre e a ineficácia do enfrentamento ostensivo até então adotado pela Microsoft.
Não apenas, mas também é relevante o fato de que
outras empresas de peso têm contribuído ativamente para o desenvolvimento do software livre, de forma que nem mesmo a MS tem poder o bastante para estrangular o movimento.
Como diz o ditado popular, "se não pode vencê-los, junte-se a eles". Porém, não exatamente.
Sendo incapaz de extinguir o software livre ou manter o jogo nos moldes em que se desenvolveu nos anos 90, a empresa agora dá sinais que começa a adotar uma tática comum quando há uma ameaça de mudança de paradigma: aliar-se para controlar ou, ao menos, conter os limites da mudança. A estratégia não é nova. Em diversos momentos da história, quando uma elite se sentiu ameaçada por um movimento popular, que foi incapaz de reprimir, assumiu uma postura de liderança do movimento, para, do interior, minar seus efeitos. Aconteceu na revolução francesa, com a burguesia liderando as massas para controlá-las e garantir que caísse o regime político, sem prejuízo da estrutura de dominação econômica. Aconteceu também no Brasil, onde as transições colônia-império, império-república e ditadura-república contaram sempre com a direção de uma elite, antes contrária ao regime que agora apoia.
Não é que a Microsoft tenha mudado. Não é que agora tenha percebido que seu modelo de apropriação dos excedentes era prejudicial à sociedade. Não é que tenha se convencido da necessidade de liberdade em software. É apenas que ela têm percebido que a mudança pode ocorrer mesmo com seus esforços em sentido contrário, então, se for para acontecer, que aconteça com ela no comando, que aconteça segundo as suas diretrizes.
Não, não é paranoia, não, não é teoria da conspiração.
Se a MS tivesse realmente interesse em contribuir com a comunidade, o passo mais óbvio seria fazer o que todos os que querem contribuir fazem: dão suporte, financeiro, técnico ou ideológico a uma comunidade já organizada. Quisesse a MS colaborar com a comunidade, o passo mais óbvio seria que tivesse alocado o seu capital na Free Software Foundation, na Open Source Alliance, no Gnome, no Debian, na
Linux Foundation. Tivesse em mente uma vontade de mudança, adotaria para seus softwares as licenças GNU, BSD ou outra aprovada pela OSI ou pela FSF, não criaria seu próprio rol de "licenças livres MS", lançando apenas alguns códigos com estas licenças e mantendo fechados seus softwares e exigindo a anuência dos usuários com seus EULAs.
Quisesse favorecer o software livre, teria contribuído com o Wine para que os softwares Windows rodassem facilmente nos kernels Linux, ao invés de lançar linhas de código no kernel para garantir que o Windows funcione bem nele. Fosse favorável à liberdade, contribuiria para a adoção do ODF e sua interoperabilidade com o seu pacote Office, ao invés de lançar seu próprio formato livre e boicotar as funções dos arquivos criados pelo OpenOffice quando transpostos para o MS Offfice.
O próprio FAQ do site deixa essa visão clara:
"Nós desejávamos uma fundação que abordasse todo o rol de projetos de software e o fizesse de acordo com as necessidades de licenças e propriedade intelectual das empresas de software." (We wanted a foundation that addresses a full spectrum of software projects, and does so with the licensing and intellectual property needs of commercial software companies in mind)
"O Estatuto da Fundação irá ditar os tipos de projetos com os quais ela trabalhará, bem como as formas como cada projeto poderá se relacionar com a Fundação". (The Foundation Charter will spell out the types of projects that the Foundation works with, and the types of relationships projects may have to the foundation)
"Nós sabemos que os desenvolvedores softwares comerciais estão mal representados nos projetos open source. Nós sabemos que as companhias de software comercial encontram desafios muito específicos na abertura de um diálogo com as comunidades open source. Sabemos que existem mal entendidos em ambos os lados. Nosso objetivo é avançar a indústria de TI, tanto para as companhias de software comercial como para as comunidades open source, ajudando-os a superar estes desafios." (We know that commercial software developers are under-represented on open source projects. We know that commercial software companies face very specific challenges in determining how to engage with open source communities. We know that there are misunderstandings on both sides. Our aim is to advance the IT industry for both commercial software companies and open source communities by helping to meet these challenges)
"A superação destes desafios é um processo colaborativo. Nós queremos a sua participação." (Meeting these challenges is a collaborative process. We want your participation)
Ou seja, eles querem formar uma organização que seja responsável pela mais completa gama de projetos livres, de acordo com os interesses das empresas de softwares, na qual eles escolherão quais projetos merecem atenção e, a cereja do bolo, eles querem a nossa participação. A fundação mal começou e já pretende ser o centro. Não são eles que estão aderindo ao movimento que já existe, somos nós que devemos aderir à liderança que eles estão propondo.
A própria linguagem do site deixa clara a intenção de perverter o movimento. Não há uma menção sequer à palavra "free", tratando-se sempre de "open source", o que se afasta mais da ideologia e de sua incompatibilidade do tipo de mudança que eles estão propondo. Falam ainda de "intellectual property", uma expressão duramente atacada por R. Stallman e pela FSF, que foram os primeiros fautores de uma mudança. Há também uma contraposição muito nítida entre a "comunidade" e as empresas, muito diferente da aproximação de companhias como a Red Hat e a Canonical que de fato vêm mostrando como é possível fazer negócio com software livre. Software Livre, não aberto.
Aliás, ao contrário de outras organizações como o Debian, que tem propostas muito claras em um estatuto social bem definido, no CodePlex:
"O documento mais importante, o Estatuto Social da Fundação, ainda não existe sequer em forma de rascunho." (The most important document, the Codeplex Foundation Charter, doesn't even exist in draft form yet)
Como dito, a ideia de aderir para controlar não é nova. Apropriações indevidas como esta já foram feitas outras vezes na história. Pense no nazismo. O partido de Hitler era o do Nationalsozialismus, ou seja, do Socialismo Nacional. Da mesma forma, o partido da ditadura no Brasil era o PSD, Partido Democrático Social e o Partido Liberal do império era escravista e conservador. A Microsoft quer colaborar com o software livre tanto quanto os nazistas queriam colaborar com o socialismo, os militares com a democracia e os escravocratas com o liberalismo.
Inicia-se agora uma etapa muito mais delicada que a anterior. Nesta nova fase a comunidade tem que se preocupar não apenas em sobreviver, mas em não deixar com que seus opositores, sob a falácia das boas intenções, tomem as rédeas do seu movimento de mudança estrutural para torná-lo mera perfumaria.
Tradução livre pelo próprio autor. Publicado originalmente em meu blog pessoal:
tagesuhu.wordpress.com