Ilegalidade em Editais de Concurso que cobrem Conhecimento em Software Específico e Proprietário

Este breve artigo versa sobre a ilegalidade dos editais de concurso público que cobrem conhecimento em software específico e proprietário, demonstrando o conflito existente entre estes atos administrativos com a Constituição Federal e com os princípios que devem reger a administração pública.

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Por: Thiago Vieira em 15/06/2005


Dos princípios do Direito Administrativo



Feito estes pequenos esclarecimentos sobre o que é software e seus dois principais modelos de licenciamento, podemos nos debruçar no conteúdo jurídico da questão. Editais que priorizam a utilização de softwares proprietários ferem fatalmente os princípios que norteiam a administração pública.

Segundo o princípio da legalidade, a administração pública está adstrita a lei. Sendo assim, o administrador público não goza do princípio da autonomia da vontade, pois, este só vigora nas relações entre particulares. O estado só deve fazer algo em decorrência da vontade legal e jamais ir de encontro à lei. A inexistência do princípio da legalidade é incompatível com o estado democrático, pois deste princípio decorre a garantia de que os direitos individuais deverão ser respeitados, sob pena do ato administrativo ( no caso em análise editais de concurso) que violar a lei ser anulado.

Originário do artigo 5º da Constituição, lei maior do estado brasileiro , o princípio da igualdade se firma como direito fundamental, devendo a Administração Pública "dispensar idêntico tratamento a todos os administrados que se encontrem na mesma situação jurídica"[8].

Além da sólida base deste princípio no artigo 5º, o que já seria suficiente para se impor perante todos os atos administrativos, inclusive os editais de concurso público, encontra-se também solidificado no artigo 37, XXI, também da CF 88, ao dispor que todo procedimento licitatório deve garantir "igualdade de condições a todos os concorrentes". Essas disposições consagram o princípio da igualdade, e banem para a ilegalidade, qualquer ato infundadamente discriminatório praticado pelo estado. A igualdade também está positivada em normas infra constitucionais.

Analisando o princípio da igualdade sob a ótica estrita da licitação, é fácil perceber que qualquer restrição, infundada, ao direito dos licitantes gera uma nulidade no certame. Questiona-se então qual seria a fundamentação para que o edital exija conhecimentos de atalhos em softwares específicos e proprietários?

No momento em que se criam regras discriminatórias para concursos públicos, não se está seguindo a vontade da norma e sim contrariando fatalmente o seu interesse, ferindo assim a legalidade, pondo em risco o estado democrático de direito.

A limitação imposta por alguns editais, são claramente discriminatórias, sem nenhuma base legal. Cobrar do administrado que ele possua conhecimentos em um determinado software proprietário é uma violência absurda ao ordenamento jurídico pátrio.

A argumentação de que é necessário o conhecimento dos futuros servidores em um determinado software utilizado no serviço público, não é valida para estabelecer critério tão discriminatório, pois na ciência da informática o importante são os conceitos e não os atalhos.

Quando um usuário domina o conceito de um determinado gênero de software, ele é capaz de transitar facilmente entre todos os softwares daquele gênero, porém quando o usuário não domina os conceitos e só decora os atalhos, ele estará preso a uma determinada versão, de um determinado software.

Aqueles que estão adestrados a apenas um software e aos seus atalhos, assim como operários nas fábricas de montagem tayloristas[9], terão uma imensa dificuldade com as mudanças, pois não conhecem os conceitos sobre a matéria e não treinaram suas faculdades cognitivas[10], sendo muito provável que a administração se onere com cursos para estes funcionários aptos a utilizar a nova ferramenta computacional. Já os que dominam os conceitos do gênero do software não terão maiores dificuldades nas mudanças.

A emenda constitucional nº 19, normatizou o princípio da eficiência, trazendo para o administrador uma responsabilidade maior no seu serviço, pois já não basta ser legal, os atos praticados devem ser eficientes, "positivos para o serviço público e satisfatório no atendimento das necessidades"[11].

Para que um processo seletivo seja considerado eficiente é necessário que o mesmo consiga selecionar os melhores candidatos, os mais preparados para exercer a atividade pública em disputa. O melhor candidato para trabalhar com a ciência da informática é aquele que dominar os conceitos e não o que decora os atalhos.

Softwares são extremamente voláteis, mudam em uma velocidade impressionante, basta a alteração de algumas linhas no código fonte para se obter um novo software. Para acompanhar a velocidade dessas mudanças deve o usuário estar preparado para eventuais modificações de versões ou de softwares.

Compreendendo esta máxima da ciência da informática, não nos resta dúvidas de que a administração deve sempre buscar pelos candidatos que acumulam o maior conhecimento conceitual, sob pena de ferir o princípio da eficiência.

Outro problema diagnosticado nestes editais é o choque com os princípios da impessoalidade e o da finalidade. Ao redigir editais que cobrem, por exemplo, conhecimento específico em Microsoft Word[12], a autoridade pública esta criando vantagens para uma determinada empresa, pois o Estado acaba por criar uma reserva de mercado para empresas privadas e põe a margem do processo licitatório aqueles que não tem condições de adquirir as licenças, desviando assim a finalidade estatal que é buscar o bem comum e não garantir privilégios para alguns particulares.

A contratação de servidores adestrados a um programa, termina por influenciar novos certames, pois sob a alegação de que se gastaria verba em cursos, a administração termina por adquirir novas licenças do mesmo software, prejudicando assim a concorrência[13].

O princípio da finalidade preceitua que "o alvo a ser alcançado pela administração é somente o interesse público, e não se alcança o interesse público se for perseguido o interesse particular, porquanto haverá nesse caso sempre uma atuação discriminatória"[14]. Qual o interesse público que se persegue com a exigência de conhecimentos em softwares proprietários ? É moralmente correto excluir do processo licitatório o administrado que domina a ciência da informática, mas não decoraram atalhos?

Como já foi dito anteriormente, o interesse que se persegue com o concurso público é o de contratar o melhor entre os concorrentes. E o melhor para exercer a atividade pública é aquele que transita com facilidade entre as centenas de software desenvolvidos ou em desenvolvimento. Por exemplo, a atividade pública exige a utilização de um editor de texto, o melhor candidato para ocupar esta vaga será o que estiver apto a utilizar qualquer software deste gênero ( Abiword, TextMaker, WordPerfect, Ted, StarOffice, OpenOffice.org Writer, Kword, MS Word, LyX, Kile, etc ... )[15].

Ainda que não fossem ilegais, tais editais sucumbiriam frente ao princípio da moralidade administrativa. O administrador não deve observar apenas o estrito respeito à lei, a conveniência, a oportunidade. Deve sempre pautar o exercício da atividade pública na moral, nos bons costumes e saber diferenciar o que é honesto ou não, tendo como referência sempre o interesse público.

Não há moralidade em se criar restrições que não se sustentam diante do interesse público, em se excluir do processo licitatório (concurso) candidatos que apesar de terem pleno conhecimento da ciência da informática, não tem acesso a softwares proprietários que tem custos sociais[16] e econômicos[17] elevados.

Notas de Roda Pé


[8] Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 9º.

[9] Frederick Taylor concebeu, como modelo fabril ideal, aquele em que a informação é difundida de maneira vertical, seguindo uma hierarquia pré-concebida, onde a base da pirâmide (os operários ) tivesse apenas os dados fundamentais para executar sua atividades, nada mais que isso.

[10] "Del acondicionamiento de Taylor sobre los obreros en las fabricas de montaje, donde cada individuo es sometido a un determinado numero de operaciones físicas para dar efectividad a un resultado de producción, pero, sin tomar en cuenta la creatividad o la necesidad de aprendizaje de esos individuos." J.A.R Disponível em http://puma.sskkii.gu.se/kit/kite03.htm. Acessado em 28/05/2005.

[11] Hely Lopes Meirelles ( 1996:90-91)

[12] Software de edição de texto da Microsoft. Microsoft Word é marca registrada da Microsoft Corp.

[13] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Processo TC-003.789/1999-3 - Processo do Tribunal de Contas da União que julga ilegal a dispensa de licitação para aquisição de licença de softwares sob alegação do princípio da padronização. Segundo o relator o princípio da padronização "não deve ser obstáculo aos estudos e à efetiva implantação e utilização de software livre no âmbito da Administração Pública Federal, vez que essa alternativa, como já suscitado, poderá trazer vantagens significativas em termos de economia de recursos, segurança e flexibilidade;".

[14] Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, Ed. 9º, páginas 14 e 15.

[15] Abiword http://www.abisource.com/, TextMaker http://www.softmaker.de/tm_en.htm, WordPerfect http://linux.corel.com/products/wpo2000_linux/, Ted http://www.nllgg.nl/Ted/, StarOffice http://wwws.sun.com/software/star/staroffice/, OpenOffice.org Writer http://www.openoffice.org.br, Kword http://www.koffice.org/kword/, MS Word www.microsoft.com, LyX http://www.lyx.org/ , Kile http://perso.club-internet.fr/pascal.brachet/kile/. Todos acessados em 29/05/2005.

[16] "O Software Proprietário tem um custo social alto por ser por natureza anti-social, o compartilhamento não é incentivado, pelo contrário, é reprimido, o seu custo financeiro normalmente é alto, excluindo a massa dos benefícios que ele poderia trazer." O Software Livre e a Soberania Nacional de Carlos, disponível em http://www.vivaolinux.com.br. Acessado 29/05/ 2005.

[17] Sistema básico da Microsoft, por exemplo, custa R$ 1.777,00* ( Windows XP Home Edition R$ 699 + Atualização R$ 399 + Pacote Office licença para fins educacionais R$ 679 ), sem falar em anti-virus e demais softwares básicos para um sistema windows. Este custo é superior ao de um Hardware moderno, que fica em torno de R$ 1.377,00**. *Fonte: www.submarino.com.br. Acessado em 29/05/2005. ** Fonte: www.login.com.br. Acessado em 29/05/ 2005.

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Páginas do artigo
   1. Introdução
   2. Dos princípios do Direito Administrativo
   3. Conclusão
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Comentários
[1] Comentário enviado por diogozanetti em 29/09/2005 - 13:29h

ótimo artigo Faiper, isso é necessário de se ter ciência pois muitos concursos pedem assim (conhecimento em Word) o que acho um absurdo...

[2] Comentário enviado por paulohsgoes em 29/09/2005 - 14:58h

Faiper, queria expressar minha satisfação por ter lido seu excelente artigo. Profundo e ao mesmo tempo simples e direto nas opiniões e na seriedade exigida pela matéria em questão. Concordo com você em gênero, número e grau, ainda mais em minha condição de estudante de Direito Administrativo com vistas à aprovação em concursos públcos. Realmente é um desrespeito frontal aos princípios daquela disciplina que só agrava esse mar de contradições que reina em nosso país. Dei nota 10 ao seu artigo, mas na verdade penso que ele merece bem mais que isso. Meus parabens.

[3] Comentário enviado por bebeto_maya em 30/09/2005 - 01:58h

É um crime sério, via de regra, praticado pelos partidos políticos conservadores neo-liberais.Aqui em Pernambuco, na administração Jarbas Vasconcelos, esse tipo de coisa acontece com frequência. Penso que a sociedade civil padece de extrema ignorância em tecnologia, e nesse caso, tende a consumir o que é mais midiático, exatamente o Windows+Word+Excel. É o caso do primeiro refrigerante que chega numa cidade do interior ser sempre a Coca-Cola..Sinceramente acho que só teremos um discurso aberto com participação da sociedade, cobrando, quando o país estiver todo monopolizado, aí vão someçar a quetionar...É Marxismo puro!

Não sou marxista, e acredito que antes de chegarmos a merda, temos que tomar uma providência...Mas é quase impossível...Cito o Banrisul e sua recente licitação para compra de 7.000 máquinas com Windows XP, a licitação pré-especifica que todas as máquinas venham com Windows e que para não haver ¨monopólio¨, será escolhida uma dentre várias empresas que lidem com a plataforma do Bill Gates...Isso é crime pois discrimina o fornecedor já na Raiz...A lei se enquadra perfeitamente aí.

Contudo, onde estão as empresas fornecedoras da Concorrência?? Conectiva, Insigne, etc...Se ninguém reclama, se ninguém contesta...O crime prevalecerá, porque a sociedade é passiva.



[4] Comentário enviado por paulohsgoes em 30/09/2005 - 10:16h

bebeto_maya, acho que você atacou o cerne da questão, que na verdade está centrado em dois pontos ambos abordados por você com bastante clareza os quais gostaria de aqui desenvolver.
O primeiro é o conluio vivenciado entre a Administração Pública e os partidos de origem dos ocupantes de cargos responsáveis pelas diretrizes políticas da respectiva esfera de governo; haja vista o cenário denunciado pela imprensa no triste episódio encenado no planalto central nos últimos 3 meses. Meu receio é que aquilo represente apenas a ponta de um gigantesco iceberg!
O segundo, e não menos grave por se tratar de uma questão presente em nossa sociedade desde a chegada da primeira caravela nesta Terra de Vera Cruz, são as nossas inércia e despreparo para o exercício consciente da cidadania, vícios esses, garantidores da ineficiência, desrespeito, demagogia e impunidade hoje reinantes.
Não sei dizer qual deles é o mais preocupante. Enquanto que para o primeiro bastaria seriedade na observância das leis, incluindo-se aí o devido rigor na aplicação de punições aos ilícitos penais cometidos (ao meu ver uma utopia jurídico-legislativa). Para o segundo não vejo outra solução que não seja uma verdadeira revolução de costumes e cultura que exorcisasse do nosso meio o que você muito bem citou na parte final de seu comentário: ausência de reclamações, ausência de contestações e passividade.
Não seria a hora de revermos nossos conceitos de cidadão? Não seria, ainda mais diante da proximidade de um ano eleitoral, a hora de darmos um recado aos detentores do poder que, apesar de serem eles os ocupantes de cargos, somos nós, o povo, os titulares do poder? Vejo com muita preocupação a hipocrisia hoje prolatada pelos meios convencionais de comunicação que colocam o exercício do voto como obrigação. Tanta certeza cerca esta minha opinião que basta um olhar mais atento para repararmos que, em momento algum, a Justiça Eleitoral veicula na mídia, para esclarecimento geral do eleitorado, como fazer para anular o voto. Sim, por que não?! É informação valiosa e, como tal, deveria estar à disposição do cidadão comum para utilizá-la como melhor lhe conviesse, haja vista ser o acesso à informação um direito constitucionalmente estabelecido. Ao invés de obrigação, o voto é um direito. Direito de expressar a preferência entre tais ou quais cidadãos são diginos da responsabilidade que pleiteiam, ou mesmo expressar nosso repúdio a qualquer um dos postulantes, os quais, com o passar do tempo, têm se mostrado suficientemente infiéis ao mandato que invariavelmente conquistam.
bebeto_maya, acredito que contra a apatia, resignação e passividade só há um remédio: a colocação pública e notória de nossa discordância. Isso, num primeiro momento, e diante da repercussão que causaria, estaria muito bem colocado numa massiça ocorrência de votos nulos nas próximas eleições. Representaria um primeiro passo na direção de um basta a tudo que assistimos passiva e resignadamente diante de nossos olhos. Os passos posteriores seriam ações mais efetivas no acompanhamento e cobrança daquilo que nos afeta como direitos: saúde, educação, dignidade para os da terceira idade, para a mulher e para a criança, só pra citar alguns.
Só queria colocar mais tres observações: primeiro peço desculpas pelo comentário quilométrico. É que comparitlho com você a mesma indignação e anseio, e acredito que você também, por novos horizontes, incluindo-se neles um terreno cada vez mais fértil para o software livre.
O segundo é que não sou candidato a nada. Sou apenas uma pessoa que encontrou um espaço apropriado para o compartilhamento de idéias e estou aberto a ouvir outras opiniões e/ou críticas às colocações aqui feitas.
E por último, mas não menos importante: VIVA O LINUX!!!

[5] Comentário enviado por xnardelli em 10/03/2006 - 10:37h

Concordo. Já fiz concurso público e a hipocrisia é muito grande.

Nos próximos que eu fizer impetrarei mandado de segurança contra a prova que exigir "atalhos" de sistemas proprietários, conforme apontado no texto.

Parabéns, saiba que não é o único a contestar esta deficiência do sistema público.


[6] Comentário enviado por joaomc em 12/05/2009 - 13:13h

Jarbas Vasconcellos não é neoliberal. Dizer isso é até ridículo. Não estou defendendo o político, e sim defendendo o uso correto das palavras ao invés de utilizá-las como xingamento a esmo ("juiz neoliberal! dá cartão pro jogador, seu capitalista sujo!").

Dito isso, alguns criticam as licitações que exigem um sistema operacional específico. Sou um defensor do uso de software livre, e acho que os funcionários precisam se adaptar e aprender ao invés de ficar choramingando porque alguma coisa ficaria diferente. Porém, na prática uma migração dessas não tem como ser feita da noite para o dia. O que fazer com os sistemas construídos para plataformas proprietárias? É preciso um planejamento e uma reestruturação da área de TI e de todos os sistemas. O ganho é óbvio, porém, tentem imaginar a gigantesca resistência às mudanças necessárias. Além do mais, sempre aparece uma empresa com seus números mágicos, mostrando que seu sistema tem um TCO menor, etc. Como tem muitas pessoas em cargos importantes sem conhecimentos em TI e altamente influenciáveis por apresentações bonitinhas, a coisa fica mais difícil ainda.


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