O usuário comum é alvo de muitas críticas pejorativas, muitas vezes por não entender alguns conceitos ou por cometer erros considerados primários por pessoas com maior conhecimento. É comum acompanharmos discussões onde usuários leigos em um determinado assunto são subjugados por usuários um pouco mais experientes, baseados muitas vezes em argumentos incoerentes, como se o intelecto pudesse ser medido apenas pela capacidade com que se utiliza um computador ou se configura um determinado software.
Notadamente existe a famosa disputa entre usuários
Linux e Windows, se "atacando" mutuamente e muitas vezes valendo-se de ideologias que não se aplicam ao debate em questão. Este artigo é uma crítica a este tipo de comportamento, visto por muitos como ingênuo e deselegante e sobre a interpretação destas condutas como práticas de manutenção da ignorância.
Sou administrador de sistemas e pelo menos duas características me permitem ser identificado como tal:
- O conhecimento adquirido sobre as partes que compõem os sistemas que trato;
- A utilização deste conhecimento visando garantir o bom funcionamento dos mesmos.
A primeira característica é facilmente reconhecida como sendo primordial para um bom administrador de sistemas. Por isto vou me concentrar na segunda.
O bom funcionamento dos sistemas permite uma classificação do administrador em questão baseada nos resultados alcançados, ou seja, permite classificar um administrador como bom ou ruim, dependendo de seus resultados, de maneira fácil e direta.
Mas os usuários são parte do sistema. E por mais que a negação desta afirmativa seja tentadora, este tipo de argumento deve ser encarada como leviana. Quando criamos sistemas, estamos interessados primordialmente que alguém venha a utilizá-los. E nossos sistemas (eventualmente?) serão utilizados por pessoas sem todo o conhecimento necessário para operá-los.
Todos nós começamos assim e somos gratos à pessoas com sensibilidade suficiente para perceber isto. Em um sistema de grande porte temos que levar em consideração que usuários de diferentes níveis de conhecimento terão acesso a ele e é preciso que saibamos fazer a utilização destes sistemas - dentro do possível - o mais amigável possível. Mas, tornar o sistema amigável não significa implementarmos políticas de manutenção da ignorância, onde o usuário é convidado a utilizar - de maneira mascarada - os recursos fornecidos pelo sistema, sobre o pretexto de que o usuário não está e não tem porquê de saber detalhes sobre o funcionamento do mesmo, pois além de perigosa, estas políticas vão de encontro a muitas características que fazem a comunidade Linux referência em liberdade.
Exemplos deste tipo de política vão desde interfaces que permitem o usuário realizar tarefas sob o pretexto de serem mais amigáveis, mas que não permitem - dada a necessidade - ao usuário uma compreensão maior sobre os procedimentos realizados, alguns fóruns de discussão, onde o foco é uma releitura de manuais técnicos, perpetuando a política copia-cola, em geral, despreocupados com o aprendizado e compreensão dos usuários dos conceitos ali envolvidos, com foco apenas na eliminação inconsequente de alguns problemas e ainda, as eternas disputas por prestígio intelectual - comumente associada aos usuários Linux e que não conferem nada além de uma tensão inútil e disputas de ego (sou melhor do que você porquê uso determinado programa, interface, sistema, camiseta etc).
O prestígio intelectual da comunidade Linux foi construído por pessoas com trabalhos sérios e honestos, preocupados com a utilização tanto quanto o esclarecimento de conceitos antes subentendidos ou mesmo escondidos. Esta é uma das principais características que fazem esta comunidade ser o que é. Se apropriar deste prestígio fugindo das responsabilidades inerentes à comunidade é algo que precisa ser revisto e questionado. Usuários são usuários. Contribuidores são outro nível de usuários e é a eles que este prestígio pertence.
Usuários precisam ter disponíveis ferramentas para se tornarem contribuidores. E é aí que os administradores possuem um papel importantíssimo. Como detentores de informação e conhecimento, precisamos ainda disponibilizar este conhecimento para todos os interessados. E grande parte da força da comunidade Linux está aí.
A comunidade de usuários Linux nasceu em um cenário prodigioso. Além da robustez dos sistemas operacionais disponíveis à esta comunidade, havia (e ainda há) uma preocupação muito grande, atingindo até mesmo a esfera jurídica, com a possibilidade de compreensão dos mecanismos utilizados naqueles sistemas. É fácil perceber os elementos deste paradigma quando observamos os termos da licença GPL e afins ou ainda, a preocupação com documentação, sempre presente nesta comunidade. Mas, é preciso ressaltar que:
- Software com licença livre não é garantia de liberdade.
A abertura do código fonte é sim um avanço nas práticas em informática. Os desdobramentos da licença GPL saltam do escopo da informática e atingem vários segmentos importantes, como a educação, o campo jurídico, as esferas moral e ética, dentre outros. Mas de nada adiantaria termos códigos abertos se estes códigos não puderem ser lidos e compreendidos.
Quem já tentou fazer uma modificação em um código (kernel ou não) sabe das dificuldades envolvidas no processo. Primeiro porquê é preciso se conhecer a linguagem utilizada naquele aplicativo e possuir um nível de domínio daquela linguagem comparável ao nível que aquele aplicativo foi escrito. Neste sentido, muitos de nós estamos privados de usufruir de maneira direta dos benefícios da liberdade nesta comunidade.
Para os que não ficaram convencidos, vale a experiência de se alterar alguma estrutura de funcionamento do kernel do Linux, valendo-se apenas do conhecimento na linguagem C e lendo apenas os códigos fonte do kernel. Todos os seus amigos fariam isto? Os seus colegas da turma de C? Provavelmente não. Há um conforto por parte da comunidade Linux em saber que alguém, em algum lugar pode, se quiser, alterar alguma parte do kernel ou mesmo partes de outros programas, corrigindo falhas e aprimorando o sistema. E a este conforto chamam liberdade.
Existem muitas pessoas sérias envolvidas na comunidade Linux e o que considero mais interessante dentro desta visão de liberdade é a preocupação com documentação existente nesta comunidade, explicando conceitos, discutindo ideias...
Ter acesso à documentações de vários níveis, voltadas para usuários iniciantes, avançados, desenvolvedores, administradores, filósofos é a grande liberdade, pois não existe liberdade sem conhecimento. Conhecei-vos a verdade e a verdade vos libertará. E, o que tenho reparado é que a produção e o acesso a estas documentações tem se tornado cada vez menor. É fácil acompanharmos listas de discussão onde a solução da maioria dos problemas está nos manuais, acessíveis aos usuários à partir de um simples comando:
man <programa em questão>
Em contrapartida, explodem artigos onde um "guru" compila as principais funcionalidades de alguns aplicativos, apresentando-as de forma simples e direta, que acabam tendo um efeito contrário, acredito eu, aos objetivos do autor. O raciocínio é simples. Montar uma exposição clara de alguma aplicação, voltada para um público onde apenas alguns detalhes são o relevantes é sempre de bom tom.
Não estou colocando em questão o papel destes gurus. Eu mesmo escrevo e escreverei vários artigos assim. É claro que cada comunidade possui suas peculiaridades, e é importante portar documentos que sejam mais facilmente compreendidos por pessoas com diferentes perfis, não apenas no campo linguístico, mas principalmente no campo cognitivo (será correto especularmos que os usuários intermediários de algum sistema possuem todos o mesmo nível? Sabem as mesmas coisas? Entendem os mesmos conceitos? Nossas escolas estão recheadas de exemplos que confrontam este tipo de argumentos).
O apelo aqui é de voltarmos esforços também para que esta conduta não crie usuários cada vez mais dependentes de documentos copia-cola ou pior, usuários que não consigam produzir algum tipo de contribuição. Quando digo isto não quero ser radical a ponto de exigir de todos os usuários documentações elaboradas sobre algum tipo de serviço ou aplicação que eles utilizam, mas esperar que os usuários não admitam uma postura de dominação intelectual, onde a única forma de contribuição seja dizer se um documento é bom o ruim, ou seja, exigir dos usuários o cumprimento do papel deles na construção e manutenção da liberdade. E este apelo é mais forte para os administradores de sistema. É preciso pensarmos um ambiente de interação onde nossos usuários tenham a chance de vislumbrar de fato, a liberdade por detrás da ideologia Linux. Em resumo, estes é o ponto-chave que é gostaria de ressaltar:
- Utilizar implica contribuir.
E não pode ser diferente. Não podemos deixar o papel da contribuição apenas para os usuários experientes, os grandes programadores etc. Deve ser papel do usuário, do usuário comum, identificar falhas, erros, sugerir direções, melhorias, construir documentações - mesmo que simples, mesmo que orais, ainda que informais - buscando sempre maturidade intelectual, pois desta forma veremos - acredito eu - um outro perfil de usuário, crítico, mas de um criticismo diferente do que vejo nos dias de hoje. Um criticismo onde o que está em jogo não é uma briga por prestígio intelectual, mas sim por um fortalecimento intelectual. Assim estaremos mais próximos da tão aclamada liberdade e, embora a crítica aos usuários seja um pouco pesada, é aos administradores que ela se dirige com peso maior.
Os usuários são parte importante do trabalho dos administradores. Usuários levianos remetem diretamente à administradores levianos. O comportamento dos usuários é um resultado direto da profissão dos administradores. Pensemos nisto quando pensarem sistemas.
Texto originalmente publicado em
http://linux.lcc.ufmg.br, na sessão "Pensando o Linux".